sábado, 6 de outubro de 2012









“O Brasil tem uma dívida enorme com as culturas negra e indígena no que tange ao seu espaço na construção da autoimagem do povo brasileiro”, cobra a diretora de Siré Obá – A Festa do Rei, em cartaz na programação do Fiac. Primeiro espetáculo profissional do Nata – Núcleo Afro-Brasileiro de Teatro, que completa 15 anos, e elaborado a partir de poesias em exaltação aos orixás, Siré Obá leva para teatros, terreiros e espaços públicos o discurso estético-político do grupo.   


Por Joceval Santana

Siré Obá primeiro levou o ambiente e estado de imersão do candomblé para o teatro e depois fez o caminho contrário, realizando apresentações em terreiros. Como foi essa via de mão dupla? Como o sacro e o cênico se contaminaram?
Siré Obá nasceu desse desejo de deixar mais nítida essa relação do teatro com o sagrado. O teatro nasceu do ritual, do encontro do humano com o divino. No caso do espetáculo, a necessidade urgente de mais e mais ações de valorização, da divulgação da herança afro-brasileira e de combate à intolerância religiosa nos levou a construir um espetáculo que mostrasse ao público a grandeza e a beleza do candomblé, tanto aos adeptos do candomblé como, principalmente, aqueles que nunca tiveram nenhum contato. Citando Bertolt Brecht, entendemos que “tudo é uma construção” e que todo intolerante é antes de tudo um ignorante e que o desconhecimento sobre o candomblé e toda a herança racista eurocêntrica e cristianizada construíram no imaginário das pessoas um olhar enviesado e deturpado sobre as religiões de matriz africana no Brasil e no mundo.  Assim sendo, construir um espetáculo que coloque dentro do espaço teatral essa herança africana foi um ato artístico-estético-político. Ainda dentro do processo de montagem, também entendemos que a comunidade de axé não se vê representada nos espaços midiáticos, seja no teatro, TV, cinema, dança etc… O seu fazer, a sua cultura e a beleza de sua história não aparecem nos espaços consagrados como importantes pela sociedade. Realizar o Siré tanto no teatro como nas comunidades de axé é colocar em cena a história, a cultura, os mitos e a beleza desse povo afrodescendente que, por motivos vários, está à margem e que tem direito de ser representado nos espaços construtores da imagem e do referencial histórico da sociedade. Por isso, acredito que o sacro e o artístico já nasceram contaminados, levando-se em consideração a carga cênica e dramática inerente às religiões de matriz africana e a vocação ritualística do teatro.

E as apresentações em espaços públicos? Qual é a intenção?
Ampliar a discussão, o acesso à arte, divulgar a herança ancestral africana, ocupar os espaços de poder com a história de milhões de negras e negros que construíram o que chamamos de Brasil. Dividir o axé, intensificar o axé (entendendo axé como a força primordial propulsora da realização da vida) e combater a intolerância religiosa. Colocar nos espaços públicos uma história que é do povo, feita pelo povo e que é pulsante e viva em cada comunidade de candomblé deste país.

Siré Obá é o trabalho de maior repercussão do Nata. Como você o situa na trajetória do grupo, que nasceu há quase 15 anos?
O Nata nasceu em Alagoinhas. O Siré Obá nos revelou para Salvador, que infelizmente ainda acredita que no interior do estado não há nada de relevância artística. É um espetáculo completamente alagoinhense, sua realização e estréia se deu no Ylê Axé OyáL’adêInan, comunidade de axé na qual sou yakekerê (mãe pequena), onde minha mãe é a ialorixá Mãe Rosa de Oyá, feito por atores e artistas de Alagoinhas em intercâmbio com artistas de Salvador. O Siré Obá foi nosso primeiro espetáculo profissional, ele é nossa verticalização político-estética e a tradução da busca do discurso do Nata e da arte que queremos fazer no interior do estado. É um espetáculo que reuniu uma gama de artistas e um profundo intercâmbio profissional que deita por terra a ideia de que o fazer artístico do interior é irrelevante.

Por que você optou em seguir a liturgia dos terreiros, utilizando a mesma sequência de cantos e toques das cerimônias religiosas?
O Siré Obá segue a sequência dos rituais públicos das comunidades de axé da Bahia. Essa foi uma estratégia para estabelecer a comunicação, para abrir a recepção do espectador. Mas gosto sempre de enfatizar que o Siré não é uma reprodução literal do ritual do candomblé, mas uma inspiração. O espetáculo tem sua dramaturgia toda construída nos orikis (poesias em exaltação aos orixás). Essa opção se deve também ao fato de ser um espetáculo-festa, uma celebração e uma homenagem aos orixás e nada mais justo do que celebrar com um siré obá, pois que siré significa festa.

O que solicita dos atores em Siré Obá? Imersão ou representação?
Não há representação no Siré, há um mergulho profundo e vertical do encontro do ator com a sua identidade ancestral afro-brasileira, desse indivíduo com o orixá. O ator é solicitado a realizar um mergulho em si mesmo, na sua ascendência, na história da sua família e na ancestralidade do povo brasileiro.

A intenção de dar um formato cênico-dramatúrgico às histórias da cosmologia afro-brasileira lança mão de quais elementos (recursos)?
O Siré  Obá não trabalha com os itans (histórias da cosmologia) e sim com as poesias em exaltação às divindades (orikis) e isso é um detalhe que muda muita coisa, pois a poesia por si só traz uma musicalidade, uma força imagética e uma potência vocal singular. No caso do Siré, a música, a força da palavra, a imagem e a dança foram elementos fundantes na concepção do espetáculo.

O Nata nasceu também com uma orientação política, o engajamento no combate ao preconceito e à intolerância religiosa. Como você avalia a situação atual na Bahia do povo de santo?  
A comunidade de axé está mais atenta, com a autoestima mais elevada e enfrentando o racismo com força e dignidade. Porém ainda é muito forte a intolerância, a discriminação. O racismo e tudo isso é resultado da má qualidade da educação brasileira, que ainda reproduz os valores do colonizador. A intolerância religiosa é uma máscara do racismo brasileiro que se camufla para segregar e eugenizar a cultura brasileira.

O Nata sofre algum preconceito na classe artística?
Muito e de todos os tipos, não só da classe artística, como da classe empresarial que não apoia o espetáculo para não associar a sua marca ao candomblé, ou seja, à cultura negra. Ainda tem muita gente que não foi ver o espetáculo por causa da temática.

O candomblé – assim como outras manifestações, expressões e formas de exercício do legado africano – é um elemento usado na divulgação da identidade e cultura baiana. Há um retorno social devido?
O que é um retorno social devido? Se você fala do ponto de vista do uso da temática do candomblé na construção do espetáculo, acho que realizar o espetáculo sobre essa temática e, além disso, apresentar o espetáculo no interior das comunidades de axé é um grande retorno social devido. Agora, se você se refere ao uso indiscriminado da herança cultural afro-brasileira pelas mídias e pelas instituições que divulgam esse ideal de africanidade turística, que vende a imagem da Bahia dentro e fora do Brasil, não há retorno social devido, há uma grande exploração dessa herança, apropriação e deturpação que gera riqueza e que a comunidade negra de candomblé não vê nem de longe. A Bahia e, por consequência, o Brasil têm uma dívida enorme com as culturas negra e indígena no que tange ao seu espaço na construção da autoimagem do povo brasileiro. A impossibilidade de uma legitimidade efetiva, a brutalidade institucional e a deturpação religiosa são entraves que impedem o povo brasileiro se ver por inteiro e de construir um espaço democrático de fato.


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